Aracruz questiona identidade dos tupiniquins para
ficar com terras
Texto de André Campos | 02/05/07
Medo de prejuízos econômicos gera tensões entre índios e moradores
locais. Para defensores dos indígenas, Aracruz Celulose utiliza ameaças
relacionadas ao desemprego visando colocar a população do município contra
comunidades tupiniquins e guaranis
Terceira parte do Especial Aracruz
X índios. Para ler desde o início, clique aqui
O local onde fica hoje a cidade de
Aracruz era apenas uma pequena vila na primeira metade do século XX – quando
ocupavam o município, além das comunidades tupiniquins, alguns lavradores
descendentes de imigrantes italianos. A consolidação da Aracruz Celulose como
uma das maiores empresas do país, contudo, mudou radicalmente esse panorama.
Terceiro maior PIB per capita do Espírito Santo, o município possui atualmente
72 mil habitantes – dos quais oito mil trabalham diretamente ligados à empresa,
segundo dados dela própria. Os impostos pagos pela companhia representam entre
60% e 70% da arrecadação municipal, número que sobre para 85% se contabilizada
toda a cadeia produtiva a reboque do eucalipto.
Fábrica da Aracruz Celulose no município: companhia mantém oito mil
empregos diretos no local
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Nesse contexto, não espanta que os
habitantes locais tenham ficado apreensivos quando a Aracruz Celulose anunciou
a instalação de uma nova fábrica em Barra do Ribeiro, no Rio Grande do Sul.
Segundo o diretor de Sustentabilidade e Relações Corporativas da empresa,
Carlos Alberto Roxo, a insegurança fundiária foi um dos principais fatores para
a escolha do sul do país, em detrimento do município de Aracruz. "Não
temos segurança jurídica nenhuma de que, resolvido o impasse atual, a decisão
não vá ser revista no futuro, num ciclo interminável", diz ele.
No segundo semestre de 2006, foi
criado o Movimento de Apoio à Aracruz Celulose, que congrega 14 entidades de
classe e mais de 300 empresas. Em novembro do ano passado, a entidade reuniu,
no centro de Vitória (ES), milhares de pessoas para manifestar repúdio à
violência contra trabalhadores que estaria sendo supostamente cometida pelos
indígenas em suas ações. Também entregou ao Ministério da Justiça um
abaixo-assinado com quase 80 mil assinaturas em defesa da Aracruz Celulose.
Davi Gomes, presidente do
Sindicato dos Trabalhadores das Indústrias Extrativas de Madeira de Aracruz
(Sintiema), é um dos principais articuladores do Movimento. Chamado de
"agitador" pelos indígenas, ele representa uma classe de 1,5 mil
profissionais – quase todos ligados ao eucalipto – altamente temerosa em
relação a seus empregos caso a Aracruz Celulose perca os 11 mil hectares.
"É uma categoria sem instrução, que sofreria um grande baque",
acredita. "Vimos que empresa estava isolada nessa discussão, por isso
decidimos nos organizar."
Num episódio bastante polêmico, o
Movimento realizou, em setembro do ano passado, uma passeata durante a qual
foram espalhados diversos outdoors pela cidade de Aracruz. "A Aracruz
Celulose trouxe o progresso. A Funai, os índios", é apenas um exemplo das
expressões vinculadas através deles – que originaram inclusive ação do
Ministério Público Federal por danos morais aos índios.
Celulose no porto manchada de tinta pelos índios:
moradores temem que brigas tragam desemprego
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Sem nenhum tipo de pudor, Gomes
questiona abertamente a identidade indígena dos moradores de Caieiras Velhas.
"Ali moram pessoas comuns, o local nunca foi uma aldeia", diz.
"O Jaguaretê, por exemplo, eu conheço como Vilson, da época em que ele era
vidraceiro no bairro onde eu morava. Lá ninguém sabia que ele era índio."
Para lideranças guaranis e
tupiniquins do município, afirmações desse tipo – assim como as ameaças
relacionadas à perda de empregos – são reflexo de uma ação clara da empresa e
seus aliados no sentido de colocar a população local contra os índios de
Aracruz. A tensão social chegou a tal ponto que, no segundo semestre do ano
passado, crianças tupiniquins matriculadas em colégios da cidade chegaram a ser
impedidas por professores de acompanhar as aulas, sob a justificativa de
estarem com os rostos pintados. Em festas realizadas nas aldeias, os jovens
indígenas freqüentemente usam tintas no corpo que podem demorar semanas para
sair.
Documentos polêmicos
Está hoje em mãos do Ministério da Justiça uma ampla
contestação da Aracruz Celulose em relação à última portaria da Funai – cujos
relatórios, segundo a empresa, são, no mínimo, tendenciosos. Nela incluem-se,
de acordo com a companhia, escrituras comprovando que as terras foram
adquiridas legalmente, de proprietários detentores delas há várias gerações. No
entanto, entre defensores da causa indígena, há uma série de desconfianças em
relação à veracidade e legitimidade desses documentos, que nunca foram trazidos
a público.
Jaguaretê, cacique de Caieiras Velhas, é um dos que
afirma que a Aracruz Celulose quer colocar população
local contra os indígenas do município
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Para garantir a posse das terras,
a empresa também argumenta que os tupiniquins há muito já se integraram à
sociedade, não possuindo mais traços da cultura tradicional. A existência de
ruas asfaltadas, igrejas e casas de alvenaria em Caieiras Velhas – algumas até
com antena parabólica – seriam apenas alguns exemplos dessa realidade.
"A Constituição garante aos
índios as terras tradicionalmente habitadas por eles, mas os tupiniquins nunca
ocuparam a área em litígio, e muito menos de acordo com a tradição da
etnia", coloca Roxo. O diretor afirma ainda desconfiar do argumento de que
os 11 mil hectares permitiriam uma retomada de antigos aldeamentos e costumes
da etnia. "Temos razões para acreditar nisso, inclusive porque, no
passado, eles mantiveram o eucalipto em áreas que foram obtidas da
empresa."
Winnie Overbeek, da ONG Fase,
questiona essa tentativa de desqualificar a identidade indígena dos
tupiniquins. Para ele, trata-se de uma estratégia desesperada por conta da
iminência da perda dos 11 mil hectares. "Durante todos os anos anteriores
em que se discutiu a questão indígena em Aracruz, a empresa nunca disse que
eles não eram índios. Por que decidiu fazer isso somente agora?",
alfineta. Para ele, um exemplo da inconsistência dos argumentos da companhia é
a própria negativa em divulgar os nomes dos antropólogos que teriam feito os
estudos hoje utilizados para sustentar essa posição.
Um relatório interno da própria
Funai, de 1981, é utilizado pela Aracruz Celulose como exemplo da atuação
perniciosa que teria ocorrido no sentido de forjar uma identidade étnica
diferenciada em Aracruz. O documento descreve suposta atuação de Moacir Cordeiro
de Melo, então chefe do posto indígena local, visando induzir uma mulher a
assumir-se como tupiniquim. "A senhora deve dizer que é índia, senão vai
se arrepender depois. O governo vai ajudá-la, dar de tudo… é só assinar",
teria dito a ela Moacir, que foi ninguém menos que o chefe de gabinete da Funai
durante a gestão de Mércio Pereira Gomes, antecessor do atual presidente.
Diante da recusa, Moacir teria
inclusive ameaçado fechar o estabelecimento comercial que essa senhora possuía.
A reportagem procurou a sede da Fundação em Brasília para obter esclarecimentos
sobre essa e outras colocações da Aracruz Celulose, mas a entidade informou que
não se pronunciará enquanto a homologação permanecer pendente no Ministério da
Justiça.
Edelvira Tureta, atual chefe de posto
da Funai no município, desqualifica essas acusações. "Infelizmente, nem
todos os funcionários da Fundação têm caráter e são indigenistas de
coração", diz ela. "Há pessoas que se renderam aos interesses da
empresa, a ponto de escrever uma asneira dessas."
Davi Gomes, sindicalista do setor de
celulose, afirma que os moradores de
Caieiras Velhas não são índios
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A contestação da Aracruz Celulose
não poupa nem mesmo Jaguaretê, cacique de Caieiras Velhas, cujo nome, segundo a
companhia, é um exemplo da falta de cultura das pessoas daquela comunidade.
"Esse apelido foi tomado emprestado de uma lenda guarani do sul do Brasil,
relacionada ao surgimento e utilização da erva-mate", afirma um documento
apresentado pela empresa. "Trata-se de mais uma peça no ‘mosaico étnico'
do referido ‘cacique', longe de caracterizar uma cultura tupiniquim."
Werá Kwaray, líder de Boa
Esperança, discorda da imagem que a Aracruz Celulose divulga em relação aos
tupiniquins. "É discriminação. Eles têm características muito diferentes
das dos brancos para a empresa dizer que não são indígenas", afirma o
cacique dos guaranis locais, grupo cuja identidade étnica raramente é
questionada em Aracruz devido ao fato de eles manterem o dialeto indígena e
vários aspectos da vida tradicional.
Freqüentemente, em matas próximas
a Caieiras Velhas, ocorrem hoje rituais de integração entre tupiniquins e
guaranis. E foi em uma dessas ocasiões, conta Jaguaretê, que ele recebeu seu
nome – durante um rito de batismo realizado no momento em que assumiu como
cacique. "Significa, na verdade, onça-pintada", revela.
No Espírito Santo, guaranis e
tupiniquins se consideram povos irmãos. Por dividirem o mesmo tronco
lingüístico, há semelhanças entre os dois dialetos e também entre as tradições
das duas etnias – o que faz Jaguaretê acreditar ser, de certa forma, um resgate
do seu passado cultural essa convivência entre os grupos. "Quem é a
empresa pra dizer o que é ou não é cultura indígena?", questiona.
Quanto à utilização dos 11 mil
hectares, ele revela, como outros tupiniquins, desejo de reflorestar ao menos
parte da área, refundar antigas aldeias e desenvolver formas de agricultura que
respeitem a mata. "A nossa vida não é essa, de viver aglomerado desse
jeito", reflete. "Tenho esperança de que nossos filhos vão andar pelo
mato, construir e plantar longe. Isso é a liberdade que nós queremos."
Conforme o acertado com a Funai,
lideranças tupiniquins e guaranis realmente foram até Brasília na semana
seguinte à ocupação do Portocel. Permanecerem lá três dias, mas não foram
recebidos pelo ministro Thomaz Bastos. Antes de deixar o cargo, em março deste
ano, Bastos devolveu à Fundação a portaria que solicitava a demarcação dos 11
mil hectares. Pediu a elaboração de uma nova proposta, que contemple o
interesse de ambas as partes. O desfecho do caso continua indefinido.
Esta reportagem foi publicada em
parceria com a revista Problemas Brasileiros
Fonte:http://reporterbrasil.org.br/2007/05/aracruz-questiona-identidade-dos-tupiniquins-para-ficar-com-terras/
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