quinta-feira, 12 de maio de 2016

Tupi or Not Tupi: That is the question


Aracruz questiona identidade dos tupiniquins para ficar com terras

Texto de André Campos | 02/05/07
Medo de prejuízos econômicos gera tensões entre índios e moradores locais. Para defensores dos indígenas, Aracruz Celulose utiliza ameaças relacionadas ao desemprego visando colocar a população do município contra comunidades tupiniquins e guaranis
Terceira parte do Especial Aracruz X índios. Para ler desde o início, clique aqui
O local onde fica hoje a cidade de Aracruz era apenas uma pequena vila na primeira metade do século XX – quando ocupavam o município, além das comunidades tupiniquins, alguns lavradores descendentes de imigrantes italianos. A consolidação da Aracruz Celulose como uma das maiores empresas do país, contudo, mudou radicalmente esse panorama. Terceiro maior PIB per capita do Espírito Santo, o município possui atualmente 72 mil habitantes – dos quais oito mil trabalham diretamente ligados à empresa, segundo dados dela própria. Os impostos pagos pela companhia representam entre 60% e 70% da arrecadação municipal, número que sobre para 85% se contabilizada toda a cadeia produtiva a reboque do eucalipto.


Fábrica da Aracruz Celulose no município: companhia mantém oito mil empregos diretos no local
Nesse contexto, não espanta que os habitantes locais tenham ficado apreensivos quando a Aracruz Celulose anunciou a instalação de uma nova fábrica em Barra do Ribeiro, no Rio Grande do Sul. Segundo o diretor de Sustentabilidade e Relações Corporativas da empresa, Carlos Alberto Roxo, a insegurança fundiária foi um dos principais fatores para a escolha do sul do país, em detrimento do município de Aracruz. "Não temos segurança jurídica nenhuma de que, resolvido o impasse atual, a decisão não vá ser revista no futuro, num ciclo interminável", diz ele.
No segundo semestre de 2006, foi criado o Movimento de Apoio à Aracruz Celulose, que congrega 14 entidades de classe e mais de 300 empresas. Em novembro do ano passado, a entidade reuniu, no centro de Vitória (ES), milhares de pessoas para manifestar repúdio à violência contra trabalhadores que estaria sendo supostamente cometida pelos indígenas em suas ações. Também entregou ao Ministério da Justiça um abaixo-assinado com quase 80 mil assinaturas em defesa da Aracruz Celulose.
Davi Gomes, presidente do Sindicato dos Trabalhadores das Indústrias Extrativas de Madeira de Aracruz (Sintiema), é um dos principais articuladores do Movimento. Chamado de "agitador" pelos indígenas, ele representa uma classe de 1,5 mil profissionais – quase todos ligados ao eucalipto – altamente temerosa em relação a seus empregos caso a Aracruz Celulose perca os 11 mil hectares. "É uma categoria sem instrução, que sofreria um grande baque", acredita. "Vimos que empresa estava isolada nessa discussão, por isso decidimos nos organizar."
Num episódio bastante polêmico, o Movimento realizou, em setembro do ano passado, uma passeata durante a qual foram espalhados diversos outdoors pela cidade de Aracruz. "A Aracruz Celulose trouxe o progresso. A Funai, os índios", é apenas um exemplo das expressões vinculadas através deles – que originaram inclusive ação do Ministério Público Federal por danos morais aos índios.


Celulose no porto manchada de tinta pelos índios:
moradores temem que brigas tragam desemprego
Sem nenhum tipo de pudor, Gomes questiona abertamente a identidade indígena dos moradores de Caieiras Velhas. "Ali moram pessoas comuns, o local nunca foi uma aldeia", diz. "O Jaguaretê, por exemplo, eu conheço como Vilson, da época em que ele era vidraceiro no bairro onde eu morava. Lá ninguém sabia que ele era índio."
Para lideranças guaranis e tupiniquins do município, afirmações desse tipo – assim como as ameaças relacionadas à perda de empregos – são reflexo de uma ação clara da empresa e seus aliados no sentido de colocar a população local contra os índios de Aracruz. A tensão social chegou a tal ponto que, no segundo semestre do ano passado, crianças tupiniquins matriculadas em colégios da cidade chegaram a ser impedidas por professores de acompanhar as aulas, sob a justificativa de estarem com os rostos pintados. Em festas realizadas nas aldeias, os jovens indígenas freqüentemente usam tintas no corpo que podem demorar semanas para sair.
Documentos polêmicos
Está hoje em mãos do Ministério da Justiça uma ampla contestação da Aracruz Celulose em relação à última portaria da Funai – cujos relatórios, segundo a empresa, são, no mínimo, tendenciosos. Nela incluem-se, de acordo com a companhia, escrituras comprovando que as terras foram adquiridas legalmente, de proprietários detentores delas há várias gerações. No entanto, entre defensores da causa indígena, há uma série de desconfianças em relação à veracidade e legitimidade desses documentos, que nunca foram trazidos a público.


Jaguaretê, cacique de Caieiras Velhas, é um dos que
afirma que a Aracruz Celulose quer colocar população
local contra os indígenas do município
Para garantir a posse das terras, a empresa também argumenta que os tupiniquins há muito já se integraram à sociedade, não possuindo mais traços da cultura tradicional. A existência de ruas asfaltadas, igrejas e casas de alvenaria em Caieiras Velhas – algumas até com antena parabólica – seriam apenas alguns exemplos dessa realidade.
"A Constituição garante aos índios as terras tradicionalmente habitadas por eles, mas os tupiniquins nunca ocuparam a área em litígio, e muito menos de acordo com a tradição da etnia", coloca Roxo. O diretor afirma ainda desconfiar do argumento de que os 11 mil hectares permitiriam uma retomada de antigos aldeamentos e costumes da etnia. "Temos razões para acreditar nisso, inclusive porque, no passado, eles mantiveram o eucalipto em áreas que foram obtidas da empresa."
Winnie Overbeek, da ONG Fase, questiona essa tentativa de desqualificar a identidade indígena dos tupiniquins. Para ele, trata-se de uma estratégia desesperada por conta da iminência da perda dos 11 mil hectares. "Durante todos os anos anteriores em que se discutiu a questão indígena em Aracruz, a empresa nunca disse que eles não eram índios. Por que decidiu fazer isso somente agora?", alfineta. Para ele, um exemplo da inconsistência dos argumentos da companhia é a própria negativa em divulgar os nomes dos antropólogos que teriam feito os estudos hoje utilizados para sustentar essa posição.
Um relatório interno da própria Funai, de 1981, é utilizado pela Aracruz Celulose como exemplo da atuação perniciosa que teria ocorrido no sentido de forjar uma identidade étnica diferenciada em Aracruz. O documento descreve suposta atuação de Moacir Cordeiro de Melo, então chefe do posto indígena local, visando induzir uma mulher a assumir-se como tupiniquim. "A senhora deve dizer que é índia, senão vai se arrepender depois. O governo vai ajudá-la, dar de tudo… é só assinar", teria dito a ela Moacir, que foi ninguém menos que o chefe de gabinete da Funai durante a gestão de Mércio Pereira Gomes, antecessor do atual presidente.
Diante da recusa, Moacir teria inclusive ameaçado fechar o estabelecimento comercial que essa senhora possuía. A reportagem procurou a sede da Fundação em Brasília para obter esclarecimentos sobre essa e outras colocações da Aracruz Celulose, mas a entidade informou que não se pronunciará enquanto a homologação permanecer pendente no Ministério da Justiça.
Edelvira Tureta, atual chefe de posto da Funai no município, desqualifica essas acusações. "Infelizmente, nem todos os funcionários da Fundação têm caráter e são indigenistas de coração", diz ela. "Há pessoas que se renderam aos interesses da empresa, a ponto de escrever uma asneira dessas."


Davi Gomes, sindicalista do setor de
celulose, afirma que os moradores de
Caieiras Velhas não são índios

A contestação da Aracruz Celulose não poupa nem mesmo Jaguaretê, cacique de Caieiras Velhas, cujo nome, segundo a companhia, é um exemplo da falta de cultura das pessoas daquela comunidade. "Esse apelido foi tomado emprestado de uma lenda guarani do sul do Brasil, relacionada ao surgimento e utilização da erva-mate", afirma um documento apresentado pela empresa. "Trata-se de mais uma peça no ‘mosaico étnico' do referido ‘cacique', longe de caracterizar uma cultura tupiniquim."
Werá Kwaray, líder de Boa Esperança, discorda da imagem que a Aracruz Celulose divulga em relação aos tupiniquins. "É discriminação. Eles têm características muito diferentes das dos brancos para a empresa dizer que não são indígenas", afirma o cacique dos guaranis locais, grupo cuja identidade étnica raramente é questionada em Aracruz devido ao fato de eles manterem o dialeto indígena e vários aspectos da vida tradicional.
Freqüentemente, em matas próximas a Caieiras Velhas, ocorrem hoje rituais de integração entre tupiniquins e guaranis. E foi em uma dessas ocasiões, conta Jaguaretê, que ele recebeu seu nome – durante um rito de batismo realizado no momento em que assumiu como cacique. "Significa, na verdade, onça-pintada", revela.
No Espírito Santo, guaranis e tupiniquins se consideram povos irmãos. Por dividirem o mesmo tronco lingüístico, há semelhanças entre os dois dialetos e também entre as tradições das duas etnias – o que faz Jaguaretê acreditar ser, de certa forma, um resgate do seu passado cultural essa convivência entre os grupos. "Quem é a empresa pra dizer o que é ou não é cultura indígena?", questiona.
Quanto à utilização dos 11 mil hectares, ele revela, como outros tupiniquins, desejo de reflorestar ao menos parte da área, refundar antigas aldeias e desenvolver formas de agricultura que respeitem a mata. "A nossa vida não é essa, de viver aglomerado desse jeito", reflete. "Tenho esperança de que nossos filhos vão andar pelo mato, construir e plantar longe. Isso é a liberdade que nós queremos."
Conforme o acertado com a Funai, lideranças tupiniquins e guaranis realmente foram até Brasília na semana seguinte à ocupação do Portocel. Permanecerem lá três dias, mas não foram recebidos pelo ministro Thomaz Bastos. Antes de deixar o cargo, em março deste ano, Bastos devolveu à Fundação a portaria que solicitava a demarcação dos 11 mil hectares. Pediu a elaboração de uma nova proposta, que contemple o interesse de ambas as partes. O desfecho do caso continua indefinido.
Esta reportagem foi publicada em parceria com a revista Problemas Brasileiros
Fonte:http://reporterbrasil.org.br/2007/05/aracruz-questiona-identidade-dos-tupiniquins-para-ficar-com-terras/

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